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Archive for outubro \26\America/Sao_Paulo 2011

O conto da Mulher-esqueleto é uma antiga história do povo inuit. Os inuit são os membros da nação indígena esquimó que habitam as regiões árticas do Canadá, do Alasca e da Groenlândia.

“Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atiranado-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.

Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.

O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu – logo em quê! – nos ossos da costela da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: “Oba, agora peguei um grande de verdade! Agora peguei um mesmo!” Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.

O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso não viu a cabeça clava surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustácios nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado à superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.

– Agh! – gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos , seus olhos se esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho forte. – Agh! – berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado, pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia. Não importava de que jeito desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisesse agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.

– Aaagggggghhhh! – uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saía correndo agarrado à vara de pescar. E o cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.

O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do peixe congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou se direto no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também a todo-generosa Sedna, em segurança, afinal.
Imaginem quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela – aquilo – jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro,um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um que de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.
– Oh, na, na, na. – Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos.- Oh, na, na, na. – Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eramiguaizinhos aos de um ser humano.
Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais umfoguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra – não tinha coragem – para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá em baixo nas pedras, quebrando totalmente seus ossos.
O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando.Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.
A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima a luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo,e pôs a boca junto a lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu,bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!… Bom, Bomm!
Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.
– Carne, carne, carne! Carne, carne, carne!- E quanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de carne.Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.
Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro,enredados da noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro.
As pessoas que não conseguem se lembrar de como aconteceu sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo d’água.As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem.”

 p. 169

A morte na casa do amor

A incapacidade de encarar a Mulher-esqueleto e de desenredá-la é o que provoca o fracasso de muitos relacionamentos de amor. Para amar é preciso não só ser forte, mas também sábio. A força vem do espírito. A sabedoria , da Mulher-esqueleto.

Como vemos na história, se quisermos ser alimentados por toda a vida, precisaremos encarar e desenvolver um relacionamento com a natureza vida-morte-vida. Quando temos esse tipo de relacionamento, não saímos mais por aí à caça de fantasias, mas nos tornamos conhecedores das mortes necessárias e nascimentos surpreendentes que criam o verdadeiro relacionamento. Quando encaramos a Mulher-esqueleto, aprendemos que a paixão não é alguma coisa que se vai “obter” mas, sim, algo gerado em ciclos e distribuído. É a Mulher-esqueleto que demonstra que a vida compartilhada, nos fluxos e refluxos, em todos os finais e reinícios, é o que cria um inigualável amor de devoção”

Estés, Clarissa Pinkola – Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem – Rio de Janeiro: Rocco, 1994 p. 168/171

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“O importante não é o que fazemos de nós, mas o que nós fazemos daquilo que fazem de nós.” JEAN PAUL SARTRE (1905-1980).

Depois de Sartre nunca mais pudemos nos esconder por detrás de nossa própria covardia e culpar aos outros ou a Deus ou a quem quer que seja. Ele nos jogou aos ombros o pesado fardo da responsabilidade absoluta e pessoal pelos nossos atos. Ele vai um pouco mais longe, ele nos diz condenados a ser livres.

Eu sei que parece contraditório pensar que a liberdade é uma prisão, mas, ele tem toda a razão. A liberdade implica em ser responsável e essa responsabilidade implica numa angústia incessante. Ele expressa essa angústia em várias frases famosas como essas:

“Ao tomar uma decisão, percebo com angústia que nada me impede de voltar atrás. Minha liberdade é o único fundamento dos valores.”

“Tudo, tudo seria melhor do que essa agonia mental, essa dor rastejante que corrói e atrapalha e acaricia e parece nunca doer o suficiente.”

Essa angústia vem da consciência de saber que nada nos impede  de voltar atrás, o medo de arcar com nossa própria liberdade.

Sarte era ateu e não cria que a natureza humana seria uma obra divina. Agora, se Deus não existe não temos valores prontos que possam legitimar a nossa conduta. Assim nunca teremos justificativa para o nosso comportamento. Estamos sós, sem desculpas. Somos os grandes e únicos responsáveis por tudo, no macro e no microcosmo. Ficamos sem ter quem apontar por nossas faltas depois que ele disse que:

“Não somos aquilo que fizeram de nós, mas o que fazemos com o que fizeram de nós”.

O que eu admiro no existencialismo de Sartre é que essa liberdade aterradora nos livra da mesquinhez de culpar os outros. Explicando melhor,  todo o homem está na posse do que ele é e deve submeter-se à responsabilidade total de sua existência.

Lembrei-me de ver uma criancinha pequena que bateu com a cabeça na parede chorando e a sua reação automática foi culpar a parede e a chamar de parede feia. Vejo muitos adultos de cabelos brancos culpando as paredes pelas cabeçadas que eles dão por suas próprias escolhas.

Sartre e o seu existencialismo nos convida à uma verdadeira vida adulta. Sendo livres somos responsáveis por nossas ações consequentemente somos livres para pensar e conceber nossos próprios paradigmas, não sendo então aquilo que fizeram de nós e sim nos criando algo totalmente novo a partir do que fizeram de nós. Somos o que escolhemos ser.

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Hoje de madrugada eu tive uma insônia terrível. Por volta das 3 da madrugada resolvi começar a assistir um filme que sempre tive vontade de assistir, mas nunca conseguia. O filme em questão chama-se The End of the affair (Fim de caso) de 1999 dirigido por Neil Jordan e baseado no romance homônimo de Graham Greene.

Trata-se de uma bela história de amor, embora trate-se de um romance extraconjugal. Se você não assistiu o filme e gosta de não saber nada sobre o filme veja o filme e leia esse post depois, pois pretendo comentar os momentos mais marcantes do mesmo.

O filme se passa em Londres durante e logo após a Segunda Guerra Mundial e mostra as obcessões, ciúmes e escolhas nos relacionamentos que ocorrem entre os três personagens principais: o escritor Maurice Bendrix; Sarah Miles;  e seu marido, o alto funcionário Henry Miles.

O romance vivido pelo próprio Graham Greene com Lady Catherine Walston serviu de base para o romance The End of the Affair. A edição britânica é dedicada a  “C”, enquanto a americana é dedicada a “Catherine.”

O foco da estória é o romance vivido por Maurice Bendrix, um escritor em ascensão durante a Segunda Grande Guerra em londres, e Sarah Miles, a esposa de um alto funcionário civil e impotente.  A personagem de Bendrix é basedo em partes no próprio Greene, assim como a personagem de Sarah também tem muito da amante de Greene à época, Catherine Walston.

Bendrix and Sarah apaixonam-se rapidamente. O relacionamento logo evolui para um amor profundo e ardente, porém  abalado pelo claro e confesso ciúme que Bendrix sente de Sarah. O ciúme é agravado pelo fato de ela negar-se a deixar o marido pois sente-se atada moralmente à promessa de ser sua esposa. Essa situação cria grande desgaste entre os ambos, pois, apesar do  inegável amor que os une, a situação os corrói. Sarah relata em seu diário: “Às vezes fico cansada de tentar convencê-lo de que o amo e vou amá-lo para sempre. Ele se apossa das minhas palavras como um advogado e as torce.”

Uma tarde tarde em que os amantes estão juntos está ocorrendo um bombardeio em Londres. Há o seguinte diálogo:

(Bendrix) – E então, o que você vai fazer quando acabar?

(Sarah) – Você acha que o amor acaba quando não me vê?

(Bendrix) – Existir é ser notado. Eu existo para você quando está com Henry?

(Sarah) – Sim.

(Bendrix) – É por isso que fica com ele? Por que sabe que vai acabar?

(Sarah) – Não.

Nesse momento uma bomba explode destruindo parte do apartamento de Bendrix levando-o quase à morte. Depois disso Sarah termina o relacionamento de ambos sem uma explicação aparente. Suas palavras, incompreensíveis para Bendrix ao se despedirem são:

(Sarah) – O amor não acaba só porque não vemos mais.

(Bendrix) – Não?

(Sarah) – As pessoas amam a Deus a vida toda, sem vê-Lo.

(Bendrix) – Não é o meu tipo de amor.

(Sarah) – Talvez não haja outro tipo.

Muito acontece, mas o momento da explosão é o ápice da vida de ambos, é o evento que mudará para sempre o curso de suas vidas. Bendrix o descreve assim:

“Eu não ouvi o estrondo. Eu acordei cinco minutos ou cinco segundos depois num mundo completamente mudado. Por um momento, eu fiquei livre de sentimentos: amor, ódio, ciúme. E tudo isso me pareceu felicidade.”

Após o estrondo Sarah desce correndo as escadas para encontrar o corpo de seu amado ensanguentado e aparentemente sem vida. Ela o chama repetidas vezes e como não obtém resposta ela começa, ali mesmo ao lado do corpo inerte de Bendrix, a fazer uma barganha com Deus, implorando para que Ele o traga de volta. Ela volta ao apartamento dele, ajoelha-se no chão e começa a rezar dizendo assim:

(Sarah) – Meu Deus, por favor, deixe-o viver. Por favor, traga-o de volta. Por favor não o leve. Eu desistirei dele para sempre, mas deixe-o viver. Deixe-o viver. Prometo que nunca o verei de novo.” Nesse momento Bendrix entra no quarto chamando por ela, ensanguentado e desorientado. Ela então pergunta:

(Sarah) – Você está vivo?

(Bendrix) – Você parece desapontada.

Sarah então pensa: “Mas, se ele está vivo, agora eu estou  morta.”  Ela deixa Bendrix completamente aturdido com o fim do relacionamento de ambos sem qualquer explicação. Segue pensando: “Como poderia explicar para ele o que não fazia sentido sequer para mim? E eu sabia que nada nesse mundo faria sentido para mim novamente. Não posso ficar presa a essa promessa. Mas algo me disse que eu ficaria. Eu havia desafiado o destino. E o destino aceitara. E eu estava no deserto então. No deserto, sem ele.”

A história do filme é toda contada em flashback. Não, não serei tão estraga prazeres a ponto de contar o fim do filme. Direi que vale a pena assistir. As atuações de Ralph Fiennes e Julianne Moore estão espetaculares. Ela foi indicada ao Oscar e ao Globo de Ouro por este papel. Além das indicações de Julianne Moore, o filme foi indicado ao Oscar de melhor fotografia e ao Globo de Ouro de Melhor Filme- drama, Melhor Diretor, Melhor trilha sonora. Viram? Nem sempre uma noite insone é de todo perdida… Recomendo.

Título original: (End of the Affair)

Lançamento: 1999 (EUA)

Direção:  Neil Jordan

Atores: Ralph Fiennes, Stephen Rea, Julianne Moore, James Bolam.

Duração: 105 min

Gênero: Romance

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“…deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim dum jeito completamente insuspeitado, assim como se fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver nascer uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e derrubar as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não crescia se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, …”

(Abreu, Caio Fernando, 1948-1996 -Fragmentos: 8 histórias e um conto inédito. – Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 93-94)

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