O conto da Mulher-esqueleto é uma antiga história do povo inuit. Os inuit são os membros da nação indígena esquimó que habitam as regiões árticas do Canadá, do Alasca e da Groenlândia.
“Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atiranado-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.
Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.
O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu – logo em quê! – nos ossos da costela da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: “Oba, agora peguei um grande de verdade! Agora peguei um mesmo!” Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.
O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso não viu a cabeça clava surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustácios nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado à superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.
– Agh! – gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos , seus olhos se esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho forte. – Agh! – berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado, pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia. Não importava de que jeito desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisesse agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.
– Aaagggggghhhh! – uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saía correndo agarrado à vara de pescar. E o cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.
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A morte na casa do amor
A incapacidade de encarar a Mulher-esqueleto e de desenredá-la é o que provoca o fracasso de muitos relacionamentos de amor. Para amar é preciso não só ser forte, mas também sábio. A força vem do espírito. A sabedoria , da Mulher-esqueleto.
Como vemos na história, se quisermos ser alimentados por toda a vida, precisaremos encarar e desenvolver um relacionamento com a natureza vida-morte-vida. Quando temos esse tipo de relacionamento, não saímos mais por aí à caça de fantasias, mas nos tornamos conhecedores das mortes necessárias e nascimentos surpreendentes que criam o verdadeiro relacionamento. Quando encaramos a Mulher-esqueleto, aprendemos que a paixão não é alguma coisa que se vai “obter” mas, sim, algo gerado em ciclos e distribuído. É a Mulher-esqueleto que demonstra que a vida compartilhada, nos fluxos e refluxos, em todos os finais e reinícios, é o que cria um inigualável amor de devoção”
Estés, Clarissa Pinkola – Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem – Rio de Janeiro: Rocco, 1994 p. 168/171